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LILIAN MAUS

Residente do Distrito de Passinhos, Osório
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Diferente de outros artistas do grupo de residência, Lilian Maus conhecia bem o local onde decidiu trabalhar. Já tinha morado no município durante a infância e, hoje, reside no trânsito entre Osório e Porto Alegre. O interesse pela região também havia aparecido em pesquisas anteriores. Em exposições como Expedição pela Paragem das Conchas, Travessia por terra, água e ar, Soçobro e Olho d´água, notava-se a investigação do território, a anotação da paisagem e o entrecruzamento de eventos históricos com um emaranhado bastante presente de mitos locais.

 

Como disse Lilian, Passinhos por si só tem um nome simbólico: passos, caminhada, travessia. Situado em área vasta, plana e rural, o local havia sido um importante ponto de passagem. Historicamente organizou-se como rota de carreteiros, tropeiros e viajantes e ainda teve seu apogeu com a construção de uma ferrovia, atualmente desativada, que conectava Osório a Palmares do Sul. 

 

Ao longo da residência, a artista anotou as linhas que marcavam as passagens por lá – os cursos de carros de boi, o antigo fluxo ferroviário, as navegações pela via lacustre, a comunicação por cabos telefônicos que colocava pontos distantes em comunicação. E para observar as vivências de uma localidade que girou em torno do deslocamento, mergulhou em biografias ligadas a esses ofícios.

 

Lilian conheceu o pai de Adriana Ávila, moradora e articuladora do distrito. Agricultor, ex-treinador de futebol, neto de carreteiro, filho de carreteiro e pai de carreteiro, Pedro da Silva Ávila parecia materializar em sua biografia boa parte da narrativa histórica do local. Além de acessar a riqueza das recordações de quem cruzava a terra no carro de boi e plantava a lenha que alimentava o trem, a artista também se aproximou das biografias de Dona Neuza, telefonista e filha da primeira telefonista da região, e de Seu Zenor, antigo responsável pela manutenção dos trilhos. A partir desses contatos, concebeu o trabalho Linhas Cruzadas, no qual propôs a projeção das imagens de álbuns dessas três famílias sobre a estrutura arquitetônica do canal de irrigação Santa Teresinha, onde a memória pessoal migraria ao espaço público – onde, por sua vez, a narrativa individual se tornaria coletiva. 

 

Como desdobramento de Linhas Cruzadas, projeto que revisitava um complexo de trânsitos remanescentes em Passinhos, Lilian realizou outra ação: construiu uma embarcação, acoplando a carreta – transporte até hoje signo da identidade regional – à estrutura de uma jangada, recurso recorrente litoral brasileiro afora. Em parceria com Paulinho Biru, artesão e velejador, o também artesão Tadeu Marcelino e o carpinteiro naval Eduardo Fernandes, montaram a peça, fixada por encaixes e amarrações artesanais, juntaram a ela rodas do carro de boi e a colocaram a trafegar na Lagoa dos Barros. Amalgamaram assim, em um só corpo, o instrumento que desbrava o campo com aquele que desbrava o mar.

 

A Lagoa dos Barros, tanto branda como traiçoeira, já havia demarcado naufrágios de outrora. Em sua enorme extensão de água doce, à mercê do vento forte e de outros ares ocultos, era ainda cenário frequente de lendas locais. Nela já se viu fazendeiro morto – o avarento Sarapião – guiando seu jipe, em meio ao eucalipto, até desaparecer entrando n’água. Nela também se viu aparição de noiva, trajada de branco, vagando na madrugada pela Praia da Santinha. 

 

Nesse lugar simbólico e vivo na imaginação de lá, Lilian alocou a embarcação. Mas ao entrar lagoa adentro, sua vela pegou fogo – a jangada que avançava contra o vento virou clarão em meio ao horizonte. 

 

Além de confundir-se com contos locais, a cena propunha outros resgates: fazia referência ao Seival, lanchão de Giuseppe Garibaldi (1807-1882) que atravessou por terra rumo à Laguna (1938), conduzido sobre rodas e puxado por juntas de bois. Fazia também alusão ao fantasma do barco Bento Gonçalves, visto iluminado na Lagoa da Pinguela após seu naufrágio (1947) durante a Semana Farroupilha.

 

A imagem da queima não foi anunciada, mas pôde ser avistada por quem cruzava de carro pela estrada ao lado ou caminhava às margens da praia. A imagem onírica, que trazia um tom de realismo mágico às anotações históricas do Litoral Norte gaúcho, formou parte do filme Ygápéba (palavra que dá nome à jangada na língua tupi), realizado pela artista em parceria com Biel Gomes e Kairo Lenz. Por meio da ficção, Lilian transitou entre o fato e o mito – e recriou um espectro de cenas fantásticas que volta e meia insurgem pela região.


 

_Texto de Lola Fabres

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