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Desde Cima

Amplidão no tempo estendido. As coisas parecem não ser o que parecem ser. A mata de volta ao morro. Casinhas de balneário resistem a condomínios. Mbyá de volta à aldeia. Casinhas feitas de sobras resistem a balneários. Um malfeito imobiliário e outro. O traçado da rodovia enxugou o banhado. Mato forte de segunda mão. Cortado quilombo ao meio. Palmito-juçara por toda a parte. Isso importa. Som de motor subindo encosta alerta a bicharada nas alturas. Tucanos, bugios, esquilos, veados, tatus, tamanduás, gralhas azuis, graxains, gatos do mato. Até de pumas, se fala. Lagoas, lagoas, lagoas. Houve um tempo em que os animais desapareceram do morro.

No momento, estão aqui.

Isso importa.


 

*

 

Quem observa o litoral do Rio Grande do Sul representado nos mapas verá uma linha reta de areias costeada por depósitos de água de tamanhos variados. Da desproporção da Lagoa dos Patos à minúscula Lagoa do Horácio, há uma abundância de azul no interior da costa. Subindo pelo mapa em direção Norte, o colar de águas passa a ser acompanhado por uma cadeia de morros. É a Serra do Mar, abrigo da Mata Atlântica, que se eleva do extremo Sul rumo ao Sudeste brasileiro. 

 

*

 

— Sabe, aquele paredão verde que costeia a Lagoa dos Barros junto à Freeway, a caminho da praia?

(O interlocutor não reconhece o nome da lagoa.)

 

— Aquela, imensa... A estrada passa junto a ela... Na outra margem ficam os “cataventos”.

 

(Com a referência aos geradores de energia eólica, vem a lembrança.)

 

— No alto daquele morro, fica a nossa casa.

 

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Ao explicar a localização do nosso sítio, no alto do Morro de Osório, é comum ver surpresa no rosto das pessoas. Mesmo se tratando de uma das rotas mais trafegadas pelos moradores da capital a caminho das praias ou ao Norte do país, parte das pessoas não imagina que as encostas sejam povoadas. 

 

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Para os habitantes da planície costeira, a cadeia de montanhas se resume ao “morro”.

 

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Na aula de História do Rio Grande do Sul, a professora explica que o povoamento do estado começou pelo litoral:

 

— Os primeiros a ocuparem a costa foram os açorianos. Aqui no litoral, muitos descendemos deles.

 

— E quem vivia na costa antes da chegada dos açorianos?

 

— Ninguém. Era um vazio.

 

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Até o advento inesperado de compartilhar uma pequena área rural naquela região, nunca me interroguei sobre o que existia do outro lado da encosta do Morro de Osório. Ignorava a existência da APA (Área de Preservação Ambiental) demarcada ali e não me recordo de especular se as lagoas observadas da rodovia teriam praias e se essas praias confrontariam campos e quem habitaria esse território. Não sabia o que significava APA. Desconhecia a história do povo Xokleng, expulso dos Campos de Cima da Serra para o litoral e, do litoral, para o nomadismo nas encostas, perseguidos por paulistas e colonos europeus. Ignorava bugrerias e correrias. Ignorava que os altiplanos, as encostas, os vales, as planícies e as areias formaram um só território costurado por tropeiros e carreteiros. Não sabia que ali se amalgamava um mesmo povo distribuído entre altos e baixos. Desconhecia a origem nordestina da culinária e os hábitos trazidos pelo tropeirismo e por valentes desertores da Guerra do Paraguai. Ignorava que, em pleno Rio Grande do Sul, se come cuscuz e se chama farofa de “paçoca”, à moda cearense, e que a Revolução Federalista lavou as encostas de sangue. Acreditava que a robusta vegetação cobrisse a serra desde sempre, ignorando que a cana-de-açúcar desertificou morros e que seu fim permitiu a revanche da mata secundária. Ignorava o sentido de “mata secundária”. 

 

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Na juventude, quando voltávamos da praia para a capital, no sentido Leste-Oeste, uma curva de acesso à rodovia nos colocava diante de um paredão verde. Era o único golpe de vista que valia a pena no trajeto sem atrativos. Lembro de admirar a visão imponente, encimada pela neblina. Entidade verde sem costas nem laterais, o morro era um recorte de única face, colado ao céu.

 

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Em uma reunião com moradores do litoral gaúcho: 

— As pessoas vêm da capital e dizem que a praia é delas, que o balneário é delas, que são daqui. Elas dizem: a minha praia. Mas não conhecem nada daqui. Não sabem quem somos, quem fomos, o que fazemos e o que comemos, como falamos. Nós não existimos para elas. Porque a praia é de todos e não é de ninguém.

 

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Nos primeiros tempos, quando a colônia lusitana terminava em Santa Catarina, navegantes portugueses decidiram ultrapassar Laguna e avançar em direção Sul à procura de barras de rios que permitissem adentrar o mundo após o fim do mundo. O tempo ventoso, a presença de bancos de areia junto à costa e a sucessão de dunas das quais não se via o fim dificultavam o acesso à terra adivinhada do mar. 

De Laguna a Tramandaí, a serra bloqueia a observação do interior continental. Dali para frente, em direção ao Uruguai, dizem que as montanhas desaparecem da superfície para mergulhar no oceano. Em terra firme, só planura.

 

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Por que Casco veio parar aqui?

De um lado:

Casco encontrou um ambiente natural de planícies interceptadas por rios e elevações; uma infinidade de cachoeiras e lajeados que desaguam em vales e lagoas junto ao oceano. Casco também conheceu banhados, planícies e areias. 

Além dessa diversidade natural, Casco mirava a paisagem humana do Litoral Norte, que miscigena uma pluralidade de etnias e práticas culturais. Entre as populações urbanas, viu a cordialidade do litorâneo conviver com dedicação à pesquisa, ao ensino, e à escrita de sua própria história. 

Casco palmilhou o interior da costa, onde viu as grandes fazendas de arroz e as pequenas propriedades da agricultura familiar. Foi em busca do povoado, do vilarejo, da colônia, do quilombo e da aldeia. Esteve em lugares onde não há ninguém.

De outro lado:

Poroso, Casco absorveu o complexo cosmos de debates ambientais e sociais que mobilizam o mundo dos moradores urbanos e veranistas; dos rurais e neorrurais; o mundo do mato. Tomou pé do desmatamento e dos limites de uma APA; do uso de defensivos químicos e sua interdição; da regulamentação de quilombos e da urbanização da orla; da drenagem de vertentes e da multiplicação de poços artesianos; da Retomada Guarani e da contaminação das lagoas. Viu eucaliptos e casuarinas; araucárias e jabuticabeiras. Viu especulação.

 

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Nem só pela beleza e nem só pela luta bate o coração do Casco, sustentado por Lola Fabres, Luciano Nascimento e Maurício Manjabosco, coordenadores do projeto e responsáveis por sua idealização e produção. 

Ao que parece, Casco gosta das contradições. Quando elegeu o Litoral Norte para projetar uma residência de artistas, não buscava o chão firme da Arcádia, preferindo o fundo informe dos banhados, de onde a vida desprende bolhas. Casco mirava uma região animada por encontros de todos os tipos: topográficos, atmosféricos, cotidianos, festivos, mornos e de luta. Optou pelo lugar onde teve início o último quinhão de terra conquistada para o Brasil, a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul; onde o mito colonialista do vazio demográfico esbarra, aqui e acolá, em sambaquis e caquinhos de cerâmica; onde tanques de óleo confrontam moinhos eólicos; onde a mata é secundária e a água das nascentes ainda é boa. Casco escolheu o Litoral Norte pelo tremor dos encontros, passados e presentes, e pelos que ainda virão.

 

*

 

O período da residência Casco foi precedido por reuniões virtuais entre equipe de coordenação e curadoria, artistas, articuladores e colaboradores locais. O objetivo era o compartilhamento de informações e referências bibliográficas sobre a história, a povoação, a economia, a geografia, as tradições, as produções, as formas de vida, as práticas e os saberes ativos no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. A partir da chegada dos artistas aos seus locais de trabalho, ficou claro que, sendo uma aliada importante, a informação de natureza abstrata seria apenas uma das disparadoras das invenções poéticas que eclodiram com uma força que raramente se produz em período tão concentrado de trabalho. A residência Casco foi deflagrada, decidida e consumada dentro do curso da experiência nos locais, uma empreitada com um grupo de artistas disposto a assumir o risco e a intensidade emocional de processos nos quais a etapa de invenção é também a de produção e, em alguns casos, a de compartilhamento.

Desenvolvido em meio à pandemia, o período de trabalho dos residentes se deu sob condições únicas, como a impossibilidade de convívio entre eles – uma das qualidades mais festejadas em projetos de residência – e as limitações de contato com as comunidades, da qual dependia, fundamentalmente, o desenvolvimento do projeto. 

A chegada dos artistas aos locais foi preparada por Casco segundo um método específico. Um dos objetivos era facilitar a formação de alianças espontâneas e de pequenas redes de apoio entre artistas e membros das comunidades. Nesse ponto, além do contato feito pela coordenação do projeto com as administrações públicas e instituições apoiadoras, entrou em cena um agente central da metodologia Casco: o articulador local. Responsável por facilitar o trânsito dos artistas nos contextos de trabalho, os articuladores são moradores com histórico de engajamento comunitário, espírito aberto e trânsito fluente em suas localidades. Tendo-os como guias, anfitriões e mediadores, os laços entre artistas e comunidades tiveram o privilégio de se formar dentro do cotidiano vivo e real de cada lugar. Assim, as alianças formadas com informantes, parceiros ou prestadores de serviços pôde ser desfrutada pelos artistas sem que esses experimentassem a condição de estrangeiros ou observadores de passagem (a menos que o desejassem). A força das alianças, assim estruturadas, alimentou a intensidade e a qualidade das ações artísticas do projeto, imbricando-as, mais profundamente, à trama do tecido local. 

 

*

 

Em uma reunião com o grupo de artistas sobre as expectativas da coordenação e curadoria quanto aos trabalhos a serem desenvolvidos durante a residência, Luciano Nascimento comentou: “A liberdade poética é inegociável”.

Como artista, já vivi a experiência de atuar em locais que desconhecia até ser levada a eles por meu trabalho, experimentando a condição de residente intermitente ou estabelecida. As ferramentas da arte que um artista carrega para essas situações, quando as carrega, representam apenas uma parte de seus recursos. Os demais são aprendidos, improvisados ou resgatados no compasso do jogo. Durante longos períodos, me propus a trabalhar em comunidades escolhidas aleatoriamente, sem outra motivação além de conhecer e interagir com parceiros ocasionais, formando alianças de amizade que permitiram experiências que não se oportunizariam segundo a lógica do cotidiano que vivia em minha cidade. 

Esse exercício experimental da liberdade – tomando emprestadas as palavras de Mario Pedrosa – ou de liberdade poética incondicional – segundo as palavras de Luciano –, é uma condição que normalmente se propicia à margem de contratos institucionais. Em Casco, esta liberdade alicerça o contrato, é um compromisso ético que resguarda o viço e o frescor do jogo comunal jogado pela arte que emerge em meio à situação, participando criticamente, ludicamente, do fluxo: sem ponto de chegada, sem disputa e sem vencedores. 

O enunciado de Luciano convidava os artistas a produzirem e a gerenciarem suas associações temporárias, encontros e, por que não, sua opção pela solidão. Que elegessem seu foco e seus interesses e definissem as formas de compartilhamento de seus resultados segundo o andamento de suas experiências. 

No dia seguinte à reunião, os artistas tomaram a estrada em direção ao Litoral Norte do Rio Grande do Sul. No horizonte, um exercício experimental, incondicional, de liberdade.

 

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Água colhida na lagoa e nela mesma vertida; pedras trocadas por nomes que ninguém leu; a beleza gráfica do envenenamento da terra. A matéria o que é? Um monumento pela ruína imobiliária; o aleitamento de nossa senhora de si mesma; a modernidade canalizada em dutos. Tramar o silêncio com mãos fortes; horizonte vincado aos pés do barqueiro; jangada incendiando a lua. Plasmar o rio em seu próprio leito. Um museu para o amigo ratão. 

 

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Casco montou casa no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Encontrou seus pares em articuladores, artistas, amigos, colaboradores e parceiros descobertos e festejados na caminhada. Encontrou uma pônei chamada Belinha. Deixou amigos que saberão esperá-lo. 

 

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Foi bonito o jogo, Casco. 

Até a próxima.


 

 

 

Maria Helena Bernardes é artista visual e professora de História e Teorias da Arte. Coautora do Projeto Areal (200-2012) e criadora do Observatório de Sensibilidades Morro da Borússia (2013-). Seus livros, ensaios e crônicas giram em torno de experiências artísticas, narrativas orais, reflexões sobre a arte e ações arte contemporânea compartilhadas com outros autores. Entre suas publicações constam “Vaga em campo de rejeito” (2003), “Histórias de Península e Praia Grande/Arranco” (2009), “Dilúvio” (2010), “Ensaio”. (2011), “A Dança do Corpo Seco” (2019) e “Em Torno de Nadja” (2021).

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