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Fricção Para a Continuidade

Se o Casco se constituiu um ensaio, como afirmou Lola Fabres, vale refletirmos sobre aspectos do programa que emergiram a partir de sua realização. Para esse exercício, gostaria de comentar implicações decorrentes da atuação do projeto no contexto em que ele se deu, apontar direções que contribuam para reforçar sua coesão e destacar a importância de apostarmos em um modelo de continuidade. 

 

Ao conceber a residência, escolhemos atuar em escala distrital, junto a núcleos comunitários de menor escala, por entendermos que isso facilitaria o processo de interação com moradores locais. Embora os distritos nos quais operamos tenham perfis distintos, podemos dizer que grande parte da região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul onde se deu a realização do Casco é marcada pela vida rural, e que a imersão nesse contexto parece ter instaurado um processo significativo de revisões ideológicas, fruto do encontro entre os sistemas de crenças e de enunciados próprios das localidades de atuação do projeto com as perspectivas que trazíamos dos centros urbanos. 

 

Era interessante perceber que princípios tradicionalmente atrelados às correntes políticas mais progressistas pareciam se esvaziar diante de aspectos práticos dos agenciamentos da vida no campo. Em princípio, o que pensa um artista que vive em um grande centro urbano sobre a importância da ampliação de áreas de preservação ambiental? Ou sobre o rigor dos órgãos de controle sanitário sobre a produção agropecuária? Durante o período de imersão, fomos percebendo a necessidade de se formular um olhar mais atento a nuances que acompanhavam essas questões. Deparávamo-nos com as dificuldades que os pequenos produtores têm em atender às demandas regulatórias e burocráticas exigidas pelos órgãos de controle. Passávamos, então, a partilhar do sentimento ambíguo da população local, que percebia as vantagens das normas de preservação, mas pontuavam a falta de políticas de transição ou de diálogo entre Estado e comunidade. Trago esse exemplo para comentar que essa fricção entre pesquisadores e artistas – radicados, em sua maioria, nas grandes cidades – e aqueles imaginários locais nos acionava outras formas de analisarmos certas pautas do debate político e de melhor reconhecermos algumas das complexidades que as constituem.

Nesse momento vale perguntarmo-nos como as particularidades culturais do vasto território brasileiro – que ainda permanece rural – são acolhidas no campo artístico. Para responder a esse questionamento, é importante lembrar que a formação e consolidação das instituições que compõem esse sistema no país se confundem com o processo de emigração da população do campo, uma das causas da abrupta urbanização no Brasil. Segundo dados do IBGE, o Brasil inicia a década de 1950 com dois terços da população vivendo no campo. Já em 1970, pouco mais da metade vivia nas cidades, e nos anos 1980, a proporção havia se invertido: dois terços da população habitavam os centros urbanos. Segundo o censo de 2010, apenas 16% da população morava no campo. Ou seja, deixamos de ser uma sociedade agrária para sermos uma sociedade urbana em um mesmo ciclo geracional. Para se ter ideia da dimensão desse deslocamento, entre 1960 e 1980, vinte e sete milhões de brasileiros saíram do campo e foram para a cidade, segundo o IPEA. Poucos países tiveram uma movimentação populacional interna dessa magnitude em tão pouco tempo. 

 

E assim, o desenvolvimento do circuito artístico no país e os discursos predominantes desde o final da década de 1940 centralizam a preocupação em torno das dinâmicas da cidade. Essa afirmação pode soar tautológica, se considerarmos que a condição para a formação de um contexto de instituições ligadas à arte é fruto da própria urbanização. Afinal, um dos vetores que mobilizou a criação de museus, de bienais, do mercado de arte, de órgãos estatais da cultura, bem como a formação artística universitária, parece ter sido a tentativa de superação de seu passado agrário. Embora nesse mesmo bojo tenham existido dissonâncias em meio à tônica modernizante e desenvolvimentista do discurso artístico hegemônico, pouco se olhou para a continuidade do Brasil rural enquanto questão viva e atual. E como sintoma, trabalhos artísticos ligados a esse contexto são ainda, em grande parte, tidos como regionalismos e não como produções decorrentes da estrutura social complexa que constitui o país. É certo que no contexto atual se percebem iniciativas que buscam reposicionar esse modus operandi, mas até questões raciais e de gênero ainda parecem ser enxergadas, no campo artístico, por um viés predominantemente urbano e mesmo a inserção do debate indígena soa, por vezes, apartada das imediações que o circundam.

 

Poderíamos, assim, defender iniciativas de produções artísticas que modulem essas perspectivas e apostar na solidificação de programas que estabeleçam relações com o contexto institucional artístico e dialoguem com a esfera rural por um viés não folclorizante. Não somente porque pautas sociais prementes estão associadas ao contexto agrário – tais como problemas ambientais, fundiários, indígenas ou alimentares –, mas também porque o fator identitário se encontra aí presente. Afinal, tendo em vista os dados apresentados anteriormente, seria possível inferir que grande parte das famílias que vivem hoje no país tem raízes ligadas ao campo e que é de lá que vem a maioria dos avós de quem atualmente reside nas cidades. 

 

Como disse incialmente, essas reflexões vieram após a realização do projeto e se encontram em um estágio inicial de formulação. Além do mais, vale ressaltar que atuamos em um contexto específico, e o que foi ali observado não poderia ser objeto de generalizações. Mas para apostar na possível potência do diálogo e da fricção entre concepções de campo e cidade, seria importante a consolidação de programas artísticos de caráter prolongado, cujos processos de integração e reconhecimento não se dessem de forma pontual ou esporádica, mas contínua. Assim, o prosseguimento dos encontros e interações promovidas pela realização do Casco é via para dar consistência às suas intenções. 

 

Ainda que os depoimentos de articuladores e moradores locais indiquem a relevância da primeira edição do Casco, as camadas de integração comunitária propostas pelo programa poderiam ganhar ainda mais consistência com sua continuidade. Afinal, a reiteração da proposta de residência poderia viabilizar a instituição de uma cena ligada à arte contemporânea. Não me refiro aqui à instauração de uma cena cultural, constituída formalmente por suas diferentes frentes educativas, expositivas e mercadológicas, mas uma cena consequente à inserção do Casco na agenda e no imaginário local. Uma cena que pudesse acionar articulações sucessivas a partir de sua atuação, que desse persistência às redes de troca e de interação ativadas pelo projeto, que consolidasse âmbitos de envolvimento e de participação de moradores e abrisse espaço à incorporação de novos atores sociais. Uma cena que contribuísse com o fortalecimento dos laços com instituições regionais – ligadas tanto à sociedade civil, como ao poder público – e, principalmente, que fornecesse condições para que os próprios habitantes pudessem problematizar e cotejar os trabalhos exercidos pelos diferentes grupos de artistas a cada edição. Desse modo, a realização do programa não se concentraria somente durante o período de imersão nas localidades, mas se desdobraria ao longo do tempo, mantendo-se também vivo nos intervalos da residência.


 

Luciano Nascimento é doutor em Estética e História da Arte (PGEHA–USP) e mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Foi professor de Sociologia da Arte e de Arte Contemporânea no Curso de Artes Visuais (FMU-SP) e leciona cursos livres focados em estética e artes visuais.

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