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CHARLENE BICALHO

Residente do Distrito de Morro Alto, Maquiné
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Antiga fazenda de Conceição do Arroio, refúgio de navios negreiros, terra recebida (e reivindicada como sua) por escravizados alforriados... As narrativas que contam a história do Morro Alto relatam, há tempo, um território em disputa. É lá que se situa a maior comunidade quilombola do estado. A área, que recebeu demarcação em 2004, dispara conflitos entre remanescentes, agricultores, posseiros, donos de pedreiras e proprietários de chácaras que beiram as água da região. Até hoje, décadas depois e sem o registro das terras, quilombolas aguardam a titulação.

Junto a jazidas de mineração e à Lagoa do Ramalhete, encontra-se o Borba, núcleo quilombola onde a artista Charlene Bicalho residiu no mês de fevereiro de 2021. Sua experiência teve a escuta como ponto de partida. O contato com as pessoas e oralidades de lá – e tudo que as oralidades têm de intangíveis – foram matéria-prima central. Nessa escuta, notou a tensão do trânsito entre os quilombolas que partem e vendem suas casas em nome da sobrevivência e aqueles que ficam – os que reivindicam o direito, até o fim. 

Que terra é essa ou a quem ela pertence? Tateando leituras, Charlene montou o vídeo Cravadas N’água, trabalho que traz sua vivência com moradores da comunidade. O vídeo parte da voz de Manoel Rodrigues da Silva, ou Tio Manoel, e da lembrança de uma infância de quem reconhece aquele espaço como seu. Em um diálogo com a presença de um passado escravocrata, o vídeo mostra a conjugação de ações simbólicas como um gesto coletivo de mediação entre a vida e a terra e resgata a força da mulher e suas ancestrais.

Há, sem dúvida, a sugestão de um campo associativo ali presente, um jogo semântico que nos conduz pela narrativa. Ao longo do vídeo, a artista extrai elementos do cotidiano e os evidencia como objetos psíquicos. O molho de chave, instrumento para a proteção ou para o acesso, indício de posse, compra ou venda; o túnel, passagem subterrânea, percurso de imersão, seja para o avanço, seja para um retorno; o sapo ou a rã, no trânsito entre terra e água, alude ao que é submerso, ao que vem do fundo, lá onde não se vê; o fogo, que lembra tanto a força como seu poder de destruição; e a chaleira, recipiente de água e nada mais. 

A água – como diz Charlene, interna e externa a todos nós – e sua iminente liberdade de fluxo também insurgem como origem ou procedência. É elemento de disputa, mas também sinal de nascente. Sobre esse ponto, nota-se a cena com Rosin. A artista acompanha a moradora Rosineida Soares, filha de pai e mãe quilombolas, atravessando a mata já crescida, rumo à fonte de sua bisavó. A nascente da bisa ainda escoa, brota e banha o solo, mas se encontra cercada em lote privado. Ainda assim, extraem a água. Lavam, fervem, carregam um pouco dela consigo. Com zelo e reverência, a despejam sobre a terra seca, demarcando as divisões originárias de lotes herdados e sublinhando-os com a água da fonte. Mesmo que a água seque e a linha evapore, estão marcados como seus. 

Ainda que polissêmicos, os elementos evidenciados por Charlene discutem particularidades de uma subjetividade em comum. Migram entre o desejo e a fobia, entre a pulsão e a luta. São como entidades concretas: únicos e imanentes. Guiam a experiência coletiva e carregam rastros de suas próprias histórias. 

E a chaleira? É também signo de acordo. Ao solicitar o uso da chaleira da família (utensílio de mais de 100 anos, passado de geração em geração), emprestada ou como presente, Charlene coloca uma tensão em evidência: a possível entrega (a alguém de fora) daquilo que é íntimo e pessoal. O gesto destacado no vídeo também remete à complexidade das trocas, dos tratos e consensos implicados em qualquer processo de incursão. 

E assim, somaram-se memórias. Entre as lembranças de Manoel, as falas de Ieda, o canto de Zenilda, os passos de Rosin, a casa de dona Doriseti, as brincadeiras de Melissa, a resiliência de Ci e Maurício e a chaleira de dona Zelaide, percebemos fragmentos das vidas de lá – um memorial daqueles que lá estão. E não podemos esquecer-nos de Joaquim. O pequeno-grande Joaquim. Que salta, que brinca, que pula no ar, chega ao céu e volta ao chão, pisando firme na própria terra. 

O trabalho de Charlene foi também acompanhado por Alexandre Silva, parceiro ao longo do período de imersão. O vídeo realizado foi projetado ao final da residência na fachada da casa da vó de Rosin, junto à fumaça da fogueira acesa em noite estrelada. Foi também lançado oficialmente semanas depois pela Associação Quilombola Rosa Osório Marques. Os registros gerados por Charlene durante o programa de residência foram por ela doados à associação. A artista garantiu que todas as imagens que tivessem sido lá produzidas (portanto, que de lá já fossem) ficassem arquivadas na sede da entidade. Sedimentadas no Morro Alto.

 

_Texto de Lola Fabres

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