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TOMAZ KLOTZEL

Residente do Distrito da Borussia, Osório
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Tomaz chegou ao distrito da Borussia atraído pela tradição fúnebre da coberta da alma. Herdada dos açorianos, a prática envolve a participação de uma pessoa das relações do falecido que vestirá uma roupa encomendada pelo morto ou por seus familiares para ser usada no velório, em missas e homenagens. Paramentado com a coberta da alma, o substituto atende pelo nome do falecido, recebe abraços, ouve lamentos, confissões e despedidas. Contam que, no passado, a Borussia foi foco dessa tradição, hoje raramente praticada.

Paola, Luciano e eu chegamos a casa de Tomaz para que nos inteirasse de sua pesquisa. A propriedade reúne moradias de uma única família no centro da Borussia. “Aqui não é tão rural quanto imaginei. Tem uma movimentação que lembra a cidade” – a fala de Tomaz transparecia um incômodo subjacente à agradável estada na Borussia. Em relação à coberta da alma, contou que se tratava de um rito sobre o qual as pessoas se mantinham discretas ou diziam desconhecer. Tomaz já vinha se dedicando aos temas da perda e do apagamento e via na coberta da alma elementos convergentes: o desaparecimento irreversível; a vida e a morte enlaçadas por um rito; a substituição do morto pelo vivo. Contudo, se mostrava inquieto. “Como alguém se concentra com este barulho?” A conversa mudava de rumo. “Não é trânsito de automóveis”, esclareceu. “Caminhões cruzam várias vezes por dia pela frente de casa.” Era evidente que o fato perturbava sua rotina. Retornando à coberta da alma, contou ter visitado uma idosa que convalescia de uma moléstia debilitante. Abatida e com lapsos de memória, a mulher foi a única testemunha localizada por Tomaz. Ela, contudo, se mostrou alheia à conversa, respondendo por monossílabos. Tomaz voltava ao desabafo anterior: “Não é apenas o barulho do caminhão, mas o som dos porcos que ele transporta. Várias vezes por dia. Eles gritam, e o cheiro é nauseante”. A casa de Tomaz é vizinha do principal empreendimento econômico do distrito, um frigorífico especializado em embutidos. As pessoas dizem se afastar das janelas a cada passagem do caminhão para evitar o cheiro e o som dos porcos. Apesar do mal-estar, o frigorífico é estimado pela comunidade como uma empresa familiar que oferece empregos, estimula a economia e abastece o mercado com bons produtos. Quanto à entrevista, a idosa permaneceu em silêncio durante a maior parte do tempo. A filha tentava suprir Tomaz com o que sabia: sim, a mãe fora incumbida de vestir uma coberta da alma, mas já não localizavam a roupa entre seus guardados. Quanto à falecida... A conversa foi interrompida por um movimento inesperado da mãe. A idosa levantou a cabeça, fixou o olhar no horizonte e proferiu uma sentença. 

*

 

A arte não é mais simples do que a vida. Numa e noutra, corpos e porcos participam de um anagrama. Houve um dia, na Borussia, em que a carga viva de um caminhão fez as pessoas chegarem à janela. Em que a carne dura e opaca se instalou na sala de estar. Um dia em que os porcos amanheceram letrados, e os corpos, inquietos diante do apagamento iminente. Em que a velha se apresentou para dar voz a cheiros que não vão bem. 

 

E a matéria, o que é?

_Texto de Maria Helena Bernardes

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