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DANIEL ESCOBAR

Residente do Distrito de Atlântida Sul, Osório
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Em 20 de setembro de 1967, Robert Smithson partiu para uma expedição a Passaic, no distrito de Nova Jersey, onde viveu durante a infância. Em sua jornada, o artista fotografou estruturas desengonçadas com que se deparou na paisagem pós-industrial do subúrbio. Um longo cano cruzava o rio sobre tonéis flutuantes; outros seis jorravam esgoto desde a margem; uma rodovia em obras desmontava a cena de um lado; de outro, uma caixa de concreto com areia oferecia um intervalo lúdico na praça vazia. O sussurro de uma “memória residual de futuro” emanava de cada uma dessas formas nascidas como ruínas e engolidas por apagões. 

Ao retornar de ônibus para casa, Smithson tentava colar as sucatas de Passaic ao cenário de sua infância. Toma nota: “O tempo transforma metáforas em coisas e as deposita nos playgrounds celestiais dos subúrbios”.

 

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Nos anos 1980, meus sogros compraram um lote no balneário de Atlântida Sul e nele construíram sua casa de veraneio. A praia que conheci reunia famílias de trabalhadores e muitas crianças. Não havia grades nas janelas, e cada uma tinha seu próprio feitio e seu puxado. Os muros eram baixos, e os veranistas formavam uma sólida comunidade sazonal.

Quando Paola Fabres, Luciano Nascimento e eu visitamos Daniel Escobar em Atlântida Sul, o artista nos pôs a par de seu encontro com o balneário. Clóvis Leal, militante e morador do bairro de Mariluz, amigo e colega da articuladora Isabel dos Santos, já o introduzira às diferentes cidades dentro da cidade. Ao Sul, contou Daniel, as antigas casinhas heterogêneas que conheci, hoje são avizinhadas pelo urbanismo blockbuster de condomínios fechados. A Noroeste, onde havia um campo de dunas, um empreendimento imobiliário duvidoso levou moradores à decisão de ocupar a área, transformada em um foco de tensões. Enquanto lutam pela posse, habitam uma ilha de precariedade sem acesso formal a energia, pavimentação e água potável. 

Em sua chegada a Atlântida Sul, Daniel iniciou uma troca de correspondências com a amiga Raquel Alberti, saudosa dos veraneios de infância passados no balneário. Abastecido pelas informações de Clóvis e Isabel, bem como pelas lembranças afetivas de Raquel, Daniel saiu a pedalar pela praia, não tardando a ser atraído pela ruína de um prédio em construção, abandonado à beira-mar. 

Sensível às relações entre dinheiro, cidade e sedução, o artista deu início a uma investigação sobre a ruína para, logo, imaginá-la reativada em outro futuro. Munido das ferramentas do design e da comunicação visual, Daniel elaborou um projeto 3D com a representação gráfica da ruína transformada, destinando-a a um “plantão de vendas” que empreenderia no centro de Atlântida Sul.  

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Um excesso de vasos com plantas ocupava quase todo o espaço da loja. Ainda assim, destacava-se a ilustração da ruína entrevista sob uma vigorosa cascata de vegetação. Na fachada, a marca “Monumento” sublinhava a proposta: além de embelezar a praia, a torre verde satisfaria veranistas que lamentavam a falta de um marco urbano em Atlântida Sul. 

Naturalmente, a transformação da ruína em monumento não mirava a exaltação do passado. Tratava-se de alterar o futuro, explicava Daniel, de antecipar-se a macegas, cipós e moitas que inevitavelmente assaltariam o prédio em decomposição. Com a implementação do projeto Monumento, o paisagismo conteria o avanço da entropia, reintegrando o otimismo à orla.

Ao deixar Atlântida Sul, Daniel presentou sua vizinha, dona de uma imobiliária, com banner contendo a ilustração. Acessível a clientes e passantes, a imagem da torre verde seguirá disseminando contrainformação à memória residual de uma modernidade jamais implantada, mas para sempre sussurrada por uma sucata à beira-mar. 

 

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Não é difícil sonhar com um futuro no qual o monumento de Daniel serviria de tributo a um urbanismo propício aos puxadinhos, cada qual com seu feitio. Um futuro onde a sedução vertical não emplacou e onde diferentes formas de habitar se acomodam horizontalmente, banhadas pela mesma água.

O tempo faz de metáforas, coisas.

 

Com a ajuda de alguns apagões, quem sabe? 

 

_ Texto de Maria Helena Bernardes

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