Articulação social e participação comunitária
Durante a concepção do programa Casco, tínhamos a expectativa de instituir, através da residência, um campo de interação e compartilhamento entre artistas e a comunidade local. Nesse intuito, atuei como coordenador na formação de um grupo de articuladores sociais que pudessem participar da proposta de integração e auxiliar o trânsito dos artistas participantes nos distritos.
Vários foram os caminhos para chegar até cada articulador. Secretarias municipais; escolas da rede pública; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFRS (Osório); Associação Ação Nascente Maquiné (ANAMA); Associação do Quilombo Rosa Osório Marques; Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas (COOMAFITT); bem como colegas e amigos com vínculos na região nos auxiliaram nessa construção de pontes com pessoas e entidades locais.
Considerando o contexto da pandemia de Covid-19, em que qualquer ação teria que ser delimitada a partir de protocolos sanitários, o trabalho com a equipe de articuladores não poderia depender de encontros presenciais, dando-se então via canais de interlocução que se alternavam entre reuniões virtuais, ligações telefônicas e grupos de WhatsApp – canais de diálogo em que o processo de elaboração dos trabalhos artísticos tornava-se, assim, um disparador de outras trocas e outros afetos.
No município de Maquiné, contatamos o ativista cultural e agroecológico Rossano Mansan, parceiro ativo da Retomada Mbyá-Guarani; João Batista Pires Neto, antropólogo, farmacêutico e coordenador do espaço Curatê Namata, na Barra do Ouro; no Morro Alto, a ajuda veio de Maurício da Silva Forte, apoiado por Ieda Ramos, ambos ligados à Associação Quilombola Rosa Osório Marques; em Três Forquilhas e Itati, a articulação ficou a cargo de Bruno Engel, Allan Fernandes, Liana Rosa e Daniela Flores, gestores e associados da COOMAFITT; no distrito de Terra de Areia aproximamo-nos do professor e geógrafo Augusto da Silva Bobsin e do casal Eva e José Zanotti, moradores do Ressaco, na Sanga Funda; por fim, no município de Osório, o grupo de articuladores teve a participação de Isabel dos Santos, representante do distrito da Borussia e referência sobre a história da região, da professora e bibliotecária Osvaldina da Silva Sauner Clesar, ligada ao campo literário e moradora do distrito de Aguapés, e de Ana Glaucia Tressoldi e Maria Regina Oliveira, articuladoras de Santa Luzia e Atlântida Sul, respectivamente.
Não se tratava apenas de buscar agentes da sociedade civil envolvidos com diferentes práticas laborais, mas especialmente estabelecer elos com pessoas participativas em redes comunitárias já existentes. Em nossa projeção, esse emaranhado social viabilizaria a confluência entre diversas redes. Poderia também evidenciar contrastes e particularidades de cada localidade e até fomentar uma ampliação espontânea de outras conexões.
O primeiro passo após a definição da equipe de articuladores foi a apresentação da nossa proposta de trabalho ao grupo em encontros virtuais. Disparamos discussões gerais sobre o campo poético; anotamos impressões e singularidades de cada território; revisitamos o caráter plural e interdisciplinar que as linguagens artísticas assumem hoje; buscamos dissolver e ressemantizar concepções de arte; e reforçamos a ideia de que cada artista teria liberdade para definir os direcionamentos de seus trabalhos.
Ao longo do período da residência, essa mesma rede que participava de reuniões gerais sobre o programa facilitou o diálogo com habitantes dos distritos, contribuiu com o processo de investigação no local e se encontrou presente, uns mais, outros menos, no dia a dia de cada artista. Ajudavam, ainda, a quebrar possíveis desconfianças ativadas pela circulação do projeto. Por vezes, ao sermos vistos como auditores do Estado, como fiscais do Ibama ou do Iphan, a mediação garantida via rede de articuladores não só facilitou nosso acesso à comunidade, como também permitiu esclarecer nosso intuito de trabalho.
A rede de articuladores também orientou a busca de insumos e materiais na região, acompanhou a elaboração das obras e atuou como ponto de difusão do projeto. Integrou, de modo geral, o mecanismo de trabalho do princípio ao fim – uma rede de guias, professores, conselheiros, amigos e porta-vozes da comunidade, que conhecia os distritos, seus serviços, horários e distâncias. Dominava atalhos, caminhos do mato, trechos de acesso e regiões que denotavam perigo. Viabilizou nossa expectativa de conceber pontes de interlocução e permitiu jogos de correspondência e exercícios de alteridade.
Dos relatos de articuladores e outros moradores envolvidos na experiência, coletados em entrevistas ao longo do programa, notamos dois pontos convergentes. Primeiro: depoimentos distintos relataram processos de reconhecimento de recursos locais e valorização da autoestima. Notamos a sensação de pertencimento ativada ao perceberem que algo de si ou do seu lugar fazia parte de um trabalho que se partilhava na comunidade. Também foi recorrente a revisitação da história local e a necessidade do cuidado e do resgate da cultura material da região frente à ameaça de um progresso que vem homogeneizando suas especificidades.
E segundo: os relatos também anunciavam a fabulação de novos projetos – desdobrados a partir de vivências junto ao programa e desenhados com a descoberta de desejos em consonância. Escutamos comentários sobre a rearticulação e o cadastramento de uma nova rede de artesãos, aproximando membros de diferentes distritos, antes não conectados; o encaminhamento de um artigo voltados à relação entre a artesania e a vegetação nativa; a vontade de incorporação da técnica de cromatografia para possíveis consultorias de análise de solo pela cooperativa de pequenos agricultores; o surgimento de pesquisas voltadas ao levantamento sócio-histórico dos territórios por historiadores locais; a elucubração de ideias para outros projetos culturais; e a vontade de organizar oficinas a partir dos trabalhos desenvolvidos.
Como educador, e a partir da experiência no projeto Casco, percebi que o raciocínio artístico, em meio a dinâmicas imersivas do cotidiano, desperta uma capacidade integradora dos saberes da vida. Algo semelhante ocorre nos processos de aprendizagem a partir de planejamento transdisciplinar. O exercício de produção artística, por sua potência, torna-se um espaço de síntese integradora dos conhecimentos descobertos, bem como campo de propulsão de novas possibilidades de pesquisa. Assim, ainda que de forma breve, acredito termos acionado a constituição criativa e afetiva de diferentes grupos em interação – sujeitos mobilizados tanto pela emoção como pelo pertencimento, compartilhando a compreensão do seu território e prospectando outros modos de existência junto à comunidade.
Um dia antes de conhecer a artista Fabiana Faleiros, escutava as entrevistas do Casco na Rádio Osório. Fiquei pensando, que interessante, artistas de vários lugares aqui nessa região. Quando cheguei aqui, em 1998, só vinham ambientalistas. Eu os achava muito radicais. Pensava que seria interessante unir no local o encontro com outras disciplinas como a sociologia, a antropologia ou a pedagogia, porque uma comunidade precisa viver todos esses mundos. [...] O que eu sonhei há 20 anos está acontecendo com o projeto que vocês trouxeram. Escutando as entrevistas na rádio, percebia algo quase empírico, sem uma lei, uma regra ou uma metodologia clássica. A questão era: o que vai se criar? E talvez uma das maiores dificuldades de nós, humanos, seja a de criar. A de se reinventar, se refazer, se regenerar. É uma coisa ótima para pessoas que repetem o mesmo ato todos os dias. Eu acho difícil ter que repetir as mesmas coisas no cotidiano. Machuca. Eu tenho a mania de ler a Bíblia e tem uma passagem em que Cristo fala que ele se sentia humilhado e reduzido enquanto homem porque a repetição massacra, e a criatividade regenera, revigora, faz renascimento. E eu estou aqui agora, acredito que cheguei num começo. – Telmo da Rocha, morador do distrito da Barra do Ouro, interlocutor e parceiro da residência Casco, uma das amizades feitas através da rede de articuladores.
Maurício Manjabosco é historiador e educador especial. Possui Pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado. Tem experiência de docência em nível superior nas áreas de História, com ênfase em História do Brasil, Sociologia do Desenvolvimento e Metodologia Científica e da Pesquisa.