DANIEL CABALLERO
Residente do Distrito de Aguapés, Osório
Proibiu-se o corte e o manejo da vegetação nativa para a produção de artesanato no distrito do Aguapés. Alegava-se a necessidade de conservação ambiental. Daniel Caballero, que havia se dirigido à localidade interessado em buscar artesanato oriundo das palhas do banhado, estranhou a informação – a destruição do meio ambiente se dá em escala industrial, não parecia ser a coleta da vegetação motivo de desequilíbrio. O artesanato havia sido uma importante fonte de renda da comunidade, com a pesca e a agricultura. Hoje, a produção encontra-se cada vez mais ausente.
Atento ao tema e auxiliado pelo vigor e entusiasmo da articuladora Osvaldina Sauner, o artista mapeou as artesãs remanescentes do Aguapés, acessando aquelas ainda responsáveis pela produção de peças manuais. Daniel também dedicou um olhar aos hábitos e às interações humanas com a flora e a fauna local. Detinha-se a desenhar a paisagem, registrá-la, ouvi-la, anotar sua textura e perceber interferências. Realizou também longos vídeos da paisagem natural entrecortada por ruídos de carros concentrados na rodovia à margem do distrito.
Sua pesquisa durante a residência estabelecia eco com trabalhos anteriores. Em Cerrado Infinito, o artista já havia assinalado a vegetação do cerrado paulista, ao mesmo tempo em que apontava seu desaparecimento como bioma autônomo. Ao ler o Guia de Campo dos Campos de Piratininga, livro editado pelo artista em 2016, ao visitar a Praça da Nascente, no bairro Pompéia, em São Paulo, onde está ancorado o Cerrado Infinito, e ao cotejá-los com sua investigação em Aguapés, observa-se que Daniel vem desdobrando um ecossistema poético. A cada obra, o artista acrescenta uma nova camada às complexidades que permeiam as relações entre a cidade, o que veio antes dela e as consequências do que estamos a cultivar.
Em Aguapés a paisagem natural não está tão extinta como em um bairro central da metrópole paulistana, mas tampouco se encontra alheia às fraturas modernas que vêm da cidade. Se, como diz Daniel, o rural é a transição entre a floresta e a cidade, pode-se dizer que também no Aguapés a lógica urbana avança a passos largos e deixa a vida selvagem na lembrança – uma reminiscência que, tal como o artesanato, parece ter mais vida na memória dos moradores mais velhos.
Aos poucos, a pesquisa foi me dando maior noção da realidade. A nova rodovia expressa, que fura um dos morros com um longo túnel, havia sido um ponto de mudança irreversível. O empreendimento destruiu o isolamento e equilíbrio, sua obra agressiva afugentou os animais, e os turistas de passagem rumo a praia não paravam mais para comprar artesanato. A velha estrada se tornou deserta e, sem ter como escoar a produção, o artesanato foi minguando. — Daniel Caballero
Como derradeira ação, Daniel instituiu o Museu Passageiro do Artesanato Regenerativo do Banhado de Aguapés, estruturado por taquaras amarradas junto ao banhado, do lado oposto à rodovia que costeia o distrito. Nele, destacava não os objetos do artesanato local, mas a própria paisagem natural que o constitui. A vegetação local tornava-se conteúdo e estrutura: armava a arquitetura e completava as linhas inconclusas do museu que se erguia.
Na água que tangenciava o museu, o artista também mergulhou três chapéus. Um para a Tiririca, outro para o Junco e outro para a Taboa. As espécies mais utilizadas pelas artesãs da região funcionavam como uma espécie de vaso de muda, e afundavam no banhado – naufrágio ou semeadura?
Ainda que o gesto traga algo de fúnebre ao assinalar uma espécie de despedida à práxis da artesania local, havia também algo de cíclico e de regenerativo naquela ação. Afinal, a planta que ali germina poderia ser ela mesma a base de novas produções.
Mas se o museu enquanto conceito é a última trincheira da aura, seria uma alusão à instituição estratégia para guardar uma produção cujo tempo de vida parecia ter dias contados? Se ele convencionalmente dá visibilidade à memória ou morte de algum processo cultural, ao ser apenas passageiro, poderia suscitar a vida daquilo que apresentou? A proposição de um museu efêmero trouxe novo elemento ao ecossistema da produção de Daniel, ao aproximar processos de resiliência daquela paisagem local e de práticas tradicionais do campo semântico da história da arte.
_Texto de Luciano Nascimento